sábado, 17 de dezembro de 2011

Pedrinhas no feijão

Enquanto separava feijões das pedrinhas que sempre os acompanham, mesmo nas melhores marcas, pensei em Mari. Ela era parente-empregada de uma conhecida. A conhecida era mulher de João, que havia sido, por mais de 40 anos, trabalhador na Sadia. O seu turno começava na madrugada e ele trabalhava na fábrica de sabão. A rima, pobre, é efeito da realidade. Ele acordava antes do sol e entrava na fábrica, e só saía quando o sol cutucava a noite. O trabalho de João não o deixou triste. Ele era filho de caboclo do Contestado; comia carne quando caçava, e dançava sobre o chão batido quando algum vizinho distante chamava a todos para um arrasta-pé de levantar poeira, e tocava rabecão, feito com linhas de pesca e um pau trabalhado com canivete. João lembrava dessas coisas, de quando corria pelos matos do Irani, e de quando passava a vida mexendo a gigantesca colher da pau na fábrica de sabão em Concórdia. João elogiava o feijão que Mari preparava para ele e para todos que eram da sua casa, e para os que chegavam espertamente perto do meio-dia. Agora, quando separo o feijão das pedrinhas, lembro da Mari, que me faz lembrar de João, e que ele cresceu solto no Irani, foi operário, e se escondeu em um toco oco pra não ver as diabruras de um dos monges João Maria.

No rastro da poesia

Chegava a 34 ºC às 15h de 16 de dezembro de 2011. No centro de Florianópolis, as pessoas disputavam os raros pedaços de sombras das marquises. As lojas estavam cheias. As mulheres abanavam leques improvisados enquanto aguardavam a fila do caixa andar. E ela andava bem devagar. Para fugir do tremendo calor e da dor nas pernas, entrou em uma livraria e foi acolhido por uma onda de ar gelado. Não eram muitos os que dividiam o ar condicionado. Havia vendedores disponíveis em todos os setores. Foi direto para a estante giratória dos livros de bolso. Olhou uma; girou. Duas; girou. Três, e ficou desconsertado: nenhum livro de poesia! Mas não saiu triste da livraria. Recompôs-se do calor e ouviu uma vendedora dizer à chefe que sairia mais cedo. Batera a meta do dia. Vendera R$ 7 mil em livros! O homenzinho sonhou: por isso não encontrou livro de poesia na estante.

Eu vi um rio na Hercílio Luz

cada vez mais lento
vai apertado pela engenharia
vai espremido pela modernidade
vai entupido de sobras da humanidade
vai sufocado por gigantesca parede - concretoferrotijolo
vai quase morto
na busca de uma saída

se maré alta e vento Sul não lhe batem
extravasa na baía
e foge da solitária prisão
e quase pode respirar outra vez
e mesmo moribundo agora tem o mundo para além das escotilhas fechadas a ferro pelos operários da Prefeitura

(se acabe no mar
rejeito da humanidade
e conte a todos cada curva do curto cortejo)

pretume nojento
guarde volume e força pra desaguar no mar
enquanto bebo minha cerveja e aprecio pernas torneadas e bronzeadas aos sábados pela manhã protegida pelas sombras do Paredão