quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Fidelidade

As putas saíram quando os sinos da Catedral convocavam as outras para a primeira oração de terça-feira. Elas saíram porque o taxista abriu o portão e subiu a rampa com o carro. Logo ele voltou e partiu. Uma ficou para trás. Correu sem medo dos saltos altos. E sem medo gritou "táxi", "táxi". Perderia o vôo para São Paulo? Ou a hora do marido? O táxi que havia descido a rampa estacionou no outro lado da Mauro Ramos. Duas desceram do carro gesticulando muito. Só a manhã entrava pela janela da cozinha. Não havia som daquelas conversas. O táxi despejou-as com as bagagens. Elas ficaram em pé ao lado de malas pretas e cor-de-rosa, plantadas diante do esquecido postinho da PM.  Logo outro táxi apareceu e a mulher de saltos altos correu novamente, gritando. Mas o carro seguiu adiante e do outro lado da rua apanhou as duas largadas pouco tempo atrás. O táxi partiu, desaparecendo atrás dos prédios da avenida. Do outro lado da rua, a mulher - alta, pernas longas, cabelos compridos, peitos pequenos - arranhava o portão de ferro. Perdera o vôo para São Paulo? Ou a hora do marido? Sem nenhuma surpresa, um táxi apareceu. O mesmo que havia subido a rampa e abandonado as duas no postinho da PM. Ela então correu e apanhou uma valise e uma jaqueta e enfiou-se no táxi. Imagino o que tenha se passado ali. Ela chamara o táxi primeiro, mas as outras, mais espertas, pegaram-no. Sem medo, ela ligou para a central e reclamou, chorou, implorou - perderia o vôo para São Paulo! E a hora do marido! -, e o táxi foi obrigado a largar na beira da avenida as duas usurpadoras. Fiel ao compromisso, obrigou-se a buscar quem antes lhe havia chamado.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Insônia

Estes desertos, insônias, descritos nas bulas e suas tarjas assustadoras, embalaram o doce sono outro dia; agora o mundo ordenado e mais do que limpo, pura luz que ofusca aqui, porém morre atrás do morro, confisca as nossas possibilidades de sonhar uma fraternidade universal; quer para si um domínio que permitimos; e arrastados por estradas magníficas - planejadas, isentas, milimetricamente limpas de qualquer coisa e opinião - com porteiras escancaradas em mão única, não enxergamos a areia, os seus grãos, e o pó, e perdemos a nossa insônia e a vontade de amar alguma coisa que virá de nossas mãos, nascida dentro de nós.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Bagagem

É um céu diferente, estrelas e fundo, mais azul, mais escuro, e as nuvens antes da tempestade dançam como em nenhum outro lugar; a chuvarada tem um barulho diferente, e os pássaros, fugindo da ventania.
Desci ao vale agora cercado de luzes de casas e prédios e de caminhões e carros, mas onde antes havia mata e dentro dela uma lenda: Tigre Velho.
Desci ao vale. Neste lugar, o calor é imenso se a brisa do Sul perde para outros ventos. Mas quando ele domina, ou chove ou a fresca tira de casa até mesmo os mais acomodados para uma volta na praça. É só para uma volta. As águas coloridas do chafariz não apareceram. A concha acústica nada ecoou. Mas a árvore centenária, escorada como uma anciã nos últimos 50 anos, de boa memória lembra da menina que subia em seus galhos para se sonhar trapezista. Os anos de 1940 deslizavam suavemente, como as patas dos cavalos pelas ruas empoeiradas e o compasso da boiada.
Desci ao vale para ouvir o lamento do Rio dos Queimados e o silêncio dos brinquedos do parquinho da praça. E de volta, trouxe uma romã na bagagem.