sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Foi tudo isso?

Foi gemido uníssono em que a pele se arrebentou friccionada incomodamente inconscientemente. Foi gemido da natureza cortando as raízes das árvores como uma avalanche de pedras na montanha. Foi tudo isso. Foi tudo isso?

Foi pingo de suor nas ranhuras dos lábios antes molhados com saliva e calor e fricção. Foi toque profundo e superficial permitido por uma natureza inconsistente e não-cerebral. Foi tudo isso. Foi tudo isso?

Foi dedo tocando a mão espalmada com as digitais e comprimindo o contorno do umbigo com as dobradiças. Foi um sem-gemido respirando alterado alternado sussurrando rente ao assoalho do corpo de onde brotam sentidos que atordoam a mente. Foi tudo isso. Foi tudo isso? Foi tudo isso e muito mais.

Um gato no banquinho

Perto da porta, um banquinho, desses comuns, que se acha em qualquer lugar. As pernas abertas. Os encaixes, soltos. O peso de uma pessoa o faz balançar. Sobre o banquinho, um gato. Lucifer Sam. Parece desatento. Apenas ali. No seu mundo, inimaginável mundo interior felino. Uma sombra passa. O gato acompanha os passos desde a primeira vista, a porta. Não olha para a sombra. Procura os buracos dos olhos. Segue-os. Assim que a sombra para, de costas, ancorando na quina da pia, Lucifer Sam salta do banquinho e passeia entre as pernas da sombra, ronronando. Então se coloca sentado, de costas, diante da porta do balcão. Solta alguns miados, olhando para trás. Então a portinha se abre. O gato vai até dentro do compartimento, dá uma volta, e segue o pacote, estremecendo a ponta do rabo. Ronronando sem cessar, abocanha a primeira parte da comida. A sombra, perturbada, procura, no seu curto espaço humano, outros a quem alimentar...

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Cinza

No interior das cinzas, na menor porção desta última coisa da coisa, no carbono puro em quantidade, há evidente sopro de morte, e uma parte de vida! Podem revirar todas as moléculas e desorganizar os átomos. A vida não vai estar ali, porque não se agarra por dentro ou por fora dessas pequenas questões da ordem do Universo. O sopro de vida que há no resto de tudo, na última poeira do nada, no fim, está na palavra que conta a existência e a inexistência de vida na última vida morta, a cinza.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Amanhecido

eram braços ou apenas espaços ou mãos espalmadas ou espasmos
escorregando nos contornos das tuas peles

eram braços e músculos e ossos feitos de aço
incumbidos de dar força e jeito e posição e ritmo
a mãos e a dedos e a digitais destruídas pelo sal
escorregando nos contornos das tuas peles

quando a madrugada chegou empurrando o vento que empurrava a porta
os dedos deslizaram pelas mãos que se apoiaram nos braços que se quebraram
e os contornos das tuas peles luzidias e umedecidas ficaram espalmadas no espasmo

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Anormal

pensamento frenético em 1 minuto

nem mesmo a busca na internet alcança
no milionésimo de segundo
os terabytes de informações
armazenadas debaixo dos cabelos

frenético
sem freio
fissurado
magnético!

os mundos e suas histórias se misturam antes, depois - agora
conexões
desconexões
convexas
cônicas

somos multidões sem multidão dentro de nós
desconhecidos
primários
autênticos
e bestialmente acreditamos que nas conexões externas somos

ruminamos uma vida pública, publicada
sem direito a não ser incomodado

somos essa aura digital?
simplificada, retilínea, espanada e pintada

somos esse sujeito?
descabelado, contraditório, peculiar e generosamente humano

pensamento frenético em 1 minuto
até desligar a rede externa e deitar-se sem conseguir fechar os olhos
perguntando para as paredes: quem sou eu

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Primaveris

sob o sol crepitante da Primavera de 2014 soltou um risco no vento
ah!

areias nas narinas

com as ventas entupidas balbuciou alguma coisa mas só se ouviu
ah!
e a esses dois bafos gemidos juntou-se logo um indefinido aquoso estalido

discretos ruídos nasceram nos extremos dos extremos do corpo
e por dentro e por fora do corpo cresceram até arranhar a garganta e sangrá-la

arrotando sangue e areia e retorcido por exageradas convulsões
exalou um som quase exaurido
ah!

pingando sangue e areia
alquebrado
ondas cerebrais reverberando o Paraíso
apresentou um espasmódico sorriso

procurou as roupas. arrumou a praia na sua posição normal. ordenou os cacos até ali destruídos. beijou a amante e foi pegar o ônibus no outro lado da rua.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Marginal

Transe
umidade transcendental

Permanente
diálogo lingual

Submissos
contornos alveolares

Tensionados
sob pressão salival

Ranhuras
arranhadas dentro das unhas

Espalmada
pele maculada aos sopros

Escorregadia
difusa na luz do fim do dia

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Estado

ondaseletromagnéticasparafusadasnofimdoUniverso
(ÊxtaSe)
seladas
em liberdade febril

imagensarrepiadaspresasentreUniversos
(CONSTruÍDAS)
disformesamplasespásmicas
em provocados tormentos febris

hecatombeúnicoeternosegundal
(MORteVIDA)
arrastandoarrastadostemporaissemmemória
febreapenasfebril

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Grossas Nuvens perfuram raios de Sol

me respira, Humanidade!, gritam pó e cacos enquanto o Sol espana com furor a total superfície do planeta. sob uma pedra, meio aberto, um conjunto de poemas em folhas de diversas cores sorri ao incendiar-se a partir das bordas. me respira, desoxigenado Mundo, acorrentado ao trabalho, ao dinheiro, ao possuir, à falta de tempo, gritam as letras no exato momento em que fritam e se esvaem como uma réstia de carbono. o Homem ergue as mãos na busca de ar e céu, num ato primeiro, e depois, de joelhos e rendido e acorrentado e preso às poucas palavras que ainda balbucia, recomeça: 

Estou na esquina como um valete de copas. Intranqüilo, fumo um cigarro e puxo o tricô da sacolinha de plástico. Tranço as agulhas, desenozando a lã milimetricamente arrumada no novelo por uma máquina moderna de 1898. Quanto mais desfaço, desentrelaçando e pondo em duas retas paralelas metros e metros de lã, maior fica o meu blusão. Quase já nem serve em mim, de tão pequeno. Espero a chuva, que se anunciou num clarão de luz no horizonte, mas que logo se foi quando as nuvens negras, pesadas e grossas se ajuntaram sobre o lago, espelhadas num céu azul de anil. Não tem movimento na cidade deserta. Mais um carro passa a mil por aquela reta. Espatifa-se no muro e continua andando sem diminuir a velocidade. O motorista acena para o vazio, mandando, sorridente como em sua noite de núpcias, ninguém tomar no cu, e é vaiado pela platéia que comparece, alinhada e rota, àquela cerimônia fúnebre. O carro se vai, espalhando fumaça e poeira do asfalto, contornando a praça do centro da cidade em que a periferia toma conta, bebendo cachaça. Ao som da sinaleira da Leonel Mosele com a Marechal, dançam salsa, e com suas roupas de pingüim, esvaem-se em contorções de valsa. Sobre o imenso capim da praça, rente ao chão, as gralhas simulam o primeiro vôo, uma batida estratégica de retirada, voltando ao ninho para matar a saudade de um lugar que nunca saem. Sacodem as penas de pele de porco, os ossos de porco, os focinhos de porco, e gralham, correndo, com as patinhas cravadas no solo, como doidas, atrás de comida: um bife acebolado do cartaz da churrascaria que vende pizza. Não se importam com a não resposta ao seu gralhar e se preocupam ao ouvirem o eco do som que fizeram naquele silêncio sem fim. As gralhas, em vôo, recortam o sol e perfuram a noite imensa e vazia. No solo, ouvindo o estrondo da cidade em agitação, enquanto Mozart seleciona Bee Gees no alto-falante da igreja, homens, mulheres e crianças correm de um lado a outro, procurando-se. Ao se encontrarem, retiram dos bolsos, carteiras e pastas, espelhinhos, e acendem imensos charutos para celebrar o renascimento. Depois voltam a correr; batem-se uns nos outros, desviando-se. Os mais pesados, fortes e gordos gemem de dor. Os menores e mais leves, aprumam-se e estufam o peito, impondo respeito. Miúdos, os gigantes soluçam de alegria ao oferecerem a mão para ajuntar os mais fortes, e os puxam para baixo, enterrando-os cada vez mais nas calçadas. Somente com as cabeças de fora, reviram os olhos, esticando as pernas, e assim, ali, sem quase se mover, giram o mundo com um pequeno esforço, enquanto de suas testas pingam gotas de suor e sangue. Como um ás de espadas, molemente intranqüilo, espero alguém passar com o guarda-chuva aberto, para me dar carona: quero voltar aonde estou.

(O texto a partir do segundo parágrafo foi publicado originalmente no Mecânicos de Guarda-Chuva, um blogue de escritores de Concórdia, SC, em 4 de Julho de 2007)