sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Bilhete

O vento levantou um voo rasante desde a baía sul e rodopiou sobre a Hercílio Luz. Veio trazendo abanadores de carnaval, confetes e serpentinas. Veio junto um bilhete amoroso em letra desenhada de uma certa Carla Carolina. O bilhete caiu num repente, como se o vento cessasse em um buraco. O vento continuava e buraco não existia. Havia o desejo do bilhete de ser lido. Foi lá na baía sul que o vento levantou como um rabo de cavalo árabe e rodopiou sem salamaleques sobre os prédios da justiça e trouxe o bilhete amoroso. Nele não tinha destinatário, apenas uma exclamação inicial, oh! amor!, e uma lista de reclamações sobre a falta de tempo, do ônibus superlotado, do preço da passagem, da falta de trabalho ou do trabalho extenuante, e de que tudo isso chegara ao fim porque ela, Carla Carolina, enchera o saco. Partiu. deixou nada a não ser o bilhete, para um amor que não teve.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Janelas

Além da janela as janelas permanecem abertas dias e noites e as mulheres olham por elas e os homens olham por elas e as crianças não alcançam nas aberturas a não ser pisando nos pés de homens e mulheres. Olho mudo as janelas mudas e tristes que olham a minha janela. Os olhos nas janelas não têm rosto. São fumaças de todas as cores suspensas no paredão contínuo sobre a Hercílio Luz que não conseguem sair de suas gaiolas cheias buracos, aberturas e ranhuras. Um dia alguém abrirá a porta e o vento empurrará todos para a rua, e as janelas ficarão vazias. E eu olharei as janelas vazias pesado e suspenso pelo nada. Até que você abra a porta e deixe o vento entrar.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O guarda-chuva

O guarda-chuva quebrado continuará quase suspenso no canto do tanque de lavar roupas, inútil? Pudesse ser luminária, iluminaria, mas ali, amarrado em si mesmo, alquebrado, feio, velho, é apenas inútil, aguardando um decisão irrevogável, que o lançará no lixo da esquina e depois no lixo do caminhão e depois no lixo do lixo. No canto do guarda-chuva não ficará marca ou sombra na parede. Nos dias de chuva, apenas a impressão de que em último caso poderia ser útil para uma pequena proteção contra as pesadas bolotas de água que caem dos arcos de nuvens de chumbo na Hercílio Luz em Janeiro. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O violinista

O violinista interrompeu o derramamento de notas apontando os dedos sangrando para o céu. As nuvens de algodão pintaram de vermelho. Noites e dias seguidos sem água e sal arrancando tristeza e alegria das cordas do violino de nada valeram. Só dedos feridos e algodão doce rubro. Por mais que dedos em lascas e sangue e músculos extasiados e corpo exaurido, o violinista interrompeu a sonata ao som de duas pesadas e grossas e estúpidas lágrimas ao ver Janaína rebolar solteira no Enterro da Tristeza pela Hercílio Luz.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Dos sonhos

Só eu ouvi do telhado, entre uma coruja escondida na toca e um morcego revoando, no silêncio dos grilos e gafanhotos, enquanto a saparia preparava-se no banhado, e a tuas mãos tentavam tocar a Lua do Pântano:

- O gato perdeu o pulo; o gato perdeu o pelo; desenrola novelo de linha; desenrola novelo da vida, e leva pro outro lado mais uma alma perdida. O gato perdeu o pulo; o gato perdeu o pelo; te esconjuro e esconjurado está; desta linha, alma sem calma, penada, quebrantada, você não vai passar.

E o gato perdeu o pulo. E o gato perdeu o pelo nas mãos enrugadas que sugam vidas.

Logo depois, mais alto, de uma árvore:

- Amarga num poço sem fundo e sem tampa; sem entrada e sem saída; nem pra cima, nem pra baixo. Sísifo. Sobe um e desce outro, remoendo a própria alma depois de acabar com unhas, dedos, pele e carne, escorregando no poço escuro, retornando sempre ao mesmo lugar. Desconcertante solidão, que pensa em destruir ao abraçar alguém que passa e lhe oferece algum presente, acaricia, suaviza a voz, entorna pequenas lágrimas dos olhos negros. Logo vai descendo mais um sorridente, entorpecido pelo vinho amábile. Mas logo que passa o efeito da palavra, do vinho e do tempo, foge rápido ou se afoga. E mais uma vez, sem entrada e sem saída, os dedos sem unhas cravados nas bordas pegajosas do poço, retorna ao castigo, escorregando e subindo, olhando o fundo e o alto, sem nada dentro. Sem nada dentro...

A coruja entocou-se. Sábia, não saberá. O morcego, preso a um fio elétrico, com o cheiro da morte:

- Não tem jeito! Não tem jeito!

O telhado repetiu, com a lua escondida nas nuvens e as tuas mãos cravadas nos olhos:

- O gato perdeu o pulo; o gato perdeu o pelo; o gato perdeu a altivez; o gato ficou sem rabo; o gato não era gato; o gato não era bicho; o gato não era gente; o gato não tinha nada: te esconjuro, alma penada.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Madrugada

molha a pele da palma, a mínima linha digital das pontas dos dedos, e olha, e olha a curva, a curva da curva, e molha a linha laminar dos lábios apertados, suprimidos de vento, de dentro e de fora, exalando aurora, do lado de fora, e dentro, bem dentro do dentro molha a palma, a linha, o inexistente, e olha, a curva da curva nas curvas das pontas dos dedos, arrepiando a aurora, molhando o vento apertado dentro da boca apertada, e olha, e olha agora, pelo buraco do tempo desenhado na palma, na pele da palma, no fundo da aurora, dentro da boca, na superfície do lábio e molha a curva da curva apertada nos dentes