terça-feira, 24 de março de 2015

Mar aberto

"muchacha pechos de miel, no corras más,
quedaste hasta el dia..."

a menina corre na praia junto com o entardecer e o vento empurra suas curvas para dentro da água gelada e seus pés quebram ondas miúdas e das pequenas ranhuras das quebraduras na imensidão salgada nascem bolhas, sussurros e saliva que se desprendem do universo e somem em grandes e pequenas imensidões salgadas. a menina corre na praia sem tocar a areia, e quebra pequenas ondas com as curvas do corpo, e seus seios pequenos e doces acalmam as nuvens que ainda rodopiam no horizonte do vento naufragado. mas mesmo assim o céu esfumaçado e pesado ruge. a menina rompe o mar e as ondas que pretendiam se erguer violentas amolecem. o mar aberto e gelado acolhe arrepios cerebrais. a ventania se desprende em riscos de luz e batidas eternas na pele, e a cabeça se perde entre o céu e a terra, e uma onda gigante entra pelos dedos e se destrói em cargas e descargas elétricas que arrebentam a realidade. o corpo molhado lamenta um sorriso e morre.

terça-feira, 10 de março de 2015

A Morte do Pingo d'Água

Foi bem na aurora do dia, aquela hora mais fria, que ouvi o sapo cantar. Era tanta água caindo, tanta água escorrendo que no pátio deu pra nadar. Mas foi o primo do Oliveira, entregador de tomates e cebolas, quem fez meu cabelo arrepiar. Puxou adaga, pistola e machado e dentro dos pingos d'água um buraco começou a fuçar. Descarregou o tambor da pistola. Abriu brechas com o fio do machado. Mas foi com a arma mais curta, certeira e fina que o coração de um pingo foi encontrar. Com terror nos olhos, o assassino cutucou um pequeno cutuco e o pingo numa charla deitou-se a cantar e quanto mais entrava o punhal mais o pingo conversava com quem não estava lá. Foi falando e foi falando e quase um ano e tanto se passou. Só não houve mais tempo porque até o fim do cabo o punhal entrou. Foi bem na aurora daquele dia, a hora mais fria, de arrepiar, quando o bem-te-vi sequer pia e a coruja já não está, que a saparia danada pô-se a cantar. Desafinada. O punhal que furou o pingo também furou o ar, e o meu dedo, e diferente da gota d'água eu parei de cantar. Foi até o punhal danado dar uma volta e meia e a gota dilacerar, e escorrer pelo fino fio da navalha e também pela ponta do cabo, e os dedos do assassino molhar. Estrebuchado e despencando, o pingo de chuva se foi, mas foi sorrindo maroto com o feito que deixou. E eu, ferido no dedo, chorei pelo dedo ferido e pelo sangue que pingou. E você, de armas em punho, riu até cambalear, gritando a todo o universo o feito que marcou: com adaga traiçoeira o pingo d'água matou. E justo aquele que regaria o pé de feijão de Maria!

quarta-feira, 4 de março de 2015

Interiores azedos

Olhava meus pedaços amontoados. Alguns eram só metades de ontem. Esquisitos. Submersos. Rascunhos. Nem a bela chuva que risca o céu e nem o céu que risca a vida me deram avisos de você. Só as plantinhas crescendo encostadas num muro, no mesmo lugar em que me amontoei. Deve ser a Primavera que corre pra me encontrar no calendário, rindo dos ótimos dias em que não existi!