quinta-feira, 23 de julho de 2015

Coisas improváveis

O homem saiu do mercado e pisou sobre o cadarço branco. Viu logo adiante uma parede com um vão curto que pensou em usar como apoio para dar o laço no cadarço. Mas não pôde. Passava uma multidão de estudantes barulhentos em protesto que o levou junto até quase a esquina da Tenente Silveira. Quando conseguiu se livrar, apoiou o pé no degrau da loja de roupas finas masculinas. De dentro da loja saía um casal discutindo sobre o valor das compras. O homem curvado buscava a outra ponta do cadarço quando foi atingido na cabeça por uma  barriga avantajada. Foi como ter sido atingido por uma mola. Deu o primeiro passo para trás e quando colocava o outro pé no chão para ficar ereto e não se estatelar no meio da rua, pisou no cadarço desamarrado. Rodopiou, raspando em uma placa amarela de desvio de trânsito para a execução de uma obra pública. Era meio-dia. Os operários estavam almoçando. E o bueiro estava sem tampa.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Temporal

vomitou manteiga ao deslizar dez dedos compridos e finos e frios e quase transparentes sobre a pele abdominal embrulhada em frisos e mais frisos de tempos passados - os que ainda virão pronunciam salientes cordames no pescoço.

inchado de manteiga abatumada no esôfago e vômito engolido nas golfadas de ar que buscava vida enfia os dedos severamente por entre os lábios da mulher e os torce como uma tenaz de uma lado a outro da boca, cutucando razoavelmente as paredes úmidas das bochechas, de onde vaza um líquido marrom.

olha catatônico e resfolegando, a traqueia trancada por uma cola de cuspe, manteiga e catarro, e ao cair, os dedos dobram e entalam na garganta de Isabel, e ela esperneia a falta de ar enquanto uma mortalha de fagulhas ilumina as pupilas profundamente azuis.

um cão pulguento rasteja e adormece ao lado dos corpos, lambendo as feridas.

Foto André Kertész (1894 - 1985)