quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Rebolado

Lânguida, virtuosa,
caminha sobre o rio
de água sempre turva,
aprisionado sob a calçada;

os sapatos de saltos muito altos
mal tocam o chão;
seu quadril desenha uma grande curva
em cada balanço;
lânguida, virtuosa e manipuladora;

passa demoradamente
e provoca um reflexo,
longo, muito longo,
nos vidros dos prédios colados
em um imenso paredão

meus olhos fogem do rebolado
e buscam o topo da sombra dos prédios;

ela segue, atraindo outros olhares,
encantados com o som dos saltos sobre a calçada oca,
enquanto ensaia um sorriso diabólico.

Reflexos

você refletida nos meus olhos,
nua.
Já não penso ou sonho;
minhas mãos tocam teus lábios,
que tocam minha face,
e tuas mãos brincam nas minhas finitudes.

você veio refletida nos meus olhos;
os carros correm pelas avenidas;
o Vento Sul ameaça as janelas;
as pontes se arcam sob o peso dos carros,
que não andam.

Eu bocejo e você ri,
Sobre uma cama desfeita.

Victor Jara, Edgar A. Poe e Janis Joplin

Planejei deixar histórias e poemas, como Victor Jara, como Edgar Allan Poe, como Janis Joplin. Ninguém, ou quase ninguém, sabe quem são as pessoas atrás desses nomes. Restos de outro século, outro milênio, em que havia sentido no sentimento; agora, querem saber a marca do meu sapato, se uso gravata, se meu perfume vem da França ou do Paraguai; querem saber o bairro em que moro e a marca do meu carro; as ações em que invisto, a quantidade de cursos que fiz para nada saber, mas que me definem como um perfil moderno e interessado na ideia de que os horizontes devem ser sempre ampliados. Sonhei deixar sentimento em algumas palavras, e silenciar diante do que não sinto. O mundo mudou. As pessoas, também. As livrarias estão vazias e as lojas de roupas da moda, entupidas. Estão vazios os debates, e as igrejas, cheias. As pessoas não vão mais a passeatas e protestos; enfileiram-se nos caixas das praças de alimentação dos grandes prédios onde centenas de lojas oferecem quinquilharias. Sonhei poemas, histórias, versos. Vou levá-los comigo, do mesmo jeito que levo Jara, Poe e Janis.

Uma volta no parque

Pedrão amava cadelas. Caçava-as pela cidade, à noite. Escondia-se nas moitas do parque e quando passavam, saltava sobre elas, derrubando-as com seu corpanzil. Amarrava um saco preto, de plástico, em volta do corpo e esperava, sentado e ofegante, olhando para as estrelas. Contava os segundos, pensando em elefantes. Dentro do saco, as cadelas se retorciam e cambaleavam. Caíam. Reduziam-se a nada, estiradas no chão empoeirado. Logo esfriavam. Pedrão as arrastava pelo parque, até o lago. Amarrava uma pedra ao corpo, com um nó bem apertado. Beijava a boca daquela estátua fria e dura e a lançava na água. Esperava algum tempo, até que as ondas sobre o lago se desfizessem e saía em disparada, correndo pelo parque. Perto do portão de casa, ouvindo os gritos da mãe, escorria mijo pelas pernas. Pedrão entrava, sapatos nas mãos, e sem que a mãe percebesse que havia saído, enfiava-se sob as cobertas, de onde nunca tem vontade de sair. A menos, é claro, para dar uma volta no parque.

Paredão

as mulheres enfileiram-se duras contra o vento
abrigam-se
vertem borrifos de água
nas batidas das correntes do Sul

na lestada, lacram-se com lentidão
escondem-se
permitindo apenas que as roupas tentem se largar dos varais
rebatem os raios de sol no verão pleno
aquecem-se
enfileiradas
num paredão da Hercílio

Campos de escravos

Eram coisas atiradas no meio da casa
sapatos, lantejoulas, crista de galo
crista de galo?!
Copo quebrado, gelo derretido, certidão de nascimento
cigarros partidos exatamente ao meio
um maço amassado
as portas estavam meio abertas, meio fechadas
o vento Sul atiçava as cortinas para uma dança sensual e muito nervosa
e as mechas de cabelos tentavam soltar-se da cabeça para um voo sem destino
ele vomitou dormindo, e aconchegou a cabeça sobre uma poça de vômito, e delirou uma revolta revolucionária em que abandonaria para sempre as longas franjas enegrecidas, trocando as baladas chorosas pelo contundente blues dos campos de escravos

Mundo que me habita

Mainglof engoliu a cobra
mas ela ainda lutava
como uma bola de fogo
no estômago bizarro
nadando no suco gástrico
embolando-se nas lascas de outras comidas
Mainglof digeriu a cobra sentindo uma leve azia e à noite, pesado, foi habitado por horrorosos pesadelos.