terça-feira, 7 de outubro de 2014

Grossas Nuvens perfuram raios de Sol

me respira, Humanidade!, gritam pó e cacos enquanto o Sol espana com furor a total superfície do planeta. sob uma pedra, meio aberto, um conjunto de poemas em folhas de diversas cores sorri ao incendiar-se a partir das bordas. me respira, desoxigenado Mundo, acorrentado ao trabalho, ao dinheiro, ao possuir, à falta de tempo, gritam as letras no exato momento em que fritam e se esvaem como uma réstia de carbono. o Homem ergue as mãos na busca de ar e céu, num ato primeiro, e depois, de joelhos e rendido e acorrentado e preso às poucas palavras que ainda balbucia, recomeça: 

Estou na esquina como um valete de copas. Intranqüilo, fumo um cigarro e puxo o tricô da sacolinha de plástico. Tranço as agulhas, desenozando a lã milimetricamente arrumada no novelo por uma máquina moderna de 1898. Quanto mais desfaço, desentrelaçando e pondo em duas retas paralelas metros e metros de lã, maior fica o meu blusão. Quase já nem serve em mim, de tão pequeno. Espero a chuva, que se anunciou num clarão de luz no horizonte, mas que logo se foi quando as nuvens negras, pesadas e grossas se ajuntaram sobre o lago, espelhadas num céu azul de anil. Não tem movimento na cidade deserta. Mais um carro passa a mil por aquela reta. Espatifa-se no muro e continua andando sem diminuir a velocidade. O motorista acena para o vazio, mandando, sorridente como em sua noite de núpcias, ninguém tomar no cu, e é vaiado pela platéia que comparece, alinhada e rota, àquela cerimônia fúnebre. O carro se vai, espalhando fumaça e poeira do asfalto, contornando a praça do centro da cidade em que a periferia toma conta, bebendo cachaça. Ao som da sinaleira da Leonel Mosele com a Marechal, dançam salsa, e com suas roupas de pingüim, esvaem-se em contorções de valsa. Sobre o imenso capim da praça, rente ao chão, as gralhas simulam o primeiro vôo, uma batida estratégica de retirada, voltando ao ninho para matar a saudade de um lugar que nunca saem. Sacodem as penas de pele de porco, os ossos de porco, os focinhos de porco, e gralham, correndo, com as patinhas cravadas no solo, como doidas, atrás de comida: um bife acebolado do cartaz da churrascaria que vende pizza. Não se importam com a não resposta ao seu gralhar e se preocupam ao ouvirem o eco do som que fizeram naquele silêncio sem fim. As gralhas, em vôo, recortam o sol e perfuram a noite imensa e vazia. No solo, ouvindo o estrondo da cidade em agitação, enquanto Mozart seleciona Bee Gees no alto-falante da igreja, homens, mulheres e crianças correm de um lado a outro, procurando-se. Ao se encontrarem, retiram dos bolsos, carteiras e pastas, espelhinhos, e acendem imensos charutos para celebrar o renascimento. Depois voltam a correr; batem-se uns nos outros, desviando-se. Os mais pesados, fortes e gordos gemem de dor. Os menores e mais leves, aprumam-se e estufam o peito, impondo respeito. Miúdos, os gigantes soluçam de alegria ao oferecerem a mão para ajuntar os mais fortes, e os puxam para baixo, enterrando-os cada vez mais nas calçadas. Somente com as cabeças de fora, reviram os olhos, esticando as pernas, e assim, ali, sem quase se mover, giram o mundo com um pequeno esforço, enquanto de suas testas pingam gotas de suor e sangue. Como um ás de espadas, molemente intranqüilo, espero alguém passar com o guarda-chuva aberto, para me dar carona: quero voltar aonde estou.

(O texto a partir do segundo parágrafo foi publicado originalmente no Mecânicos de Guarda-Chuva, um blogue de escritores de Concórdia, SC, em 4 de Julho de 2007)