terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Uma explosão na casa de força

No final dos anos de 1950, durante a construção do prédio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade, na Rua Adolfo Konder, as máquinas que estrilavam e bufavam do anoitecer até por volta das 23 horas no outro lado da rua, e cuspindo uma nuvem escura de óleo diesel de péssima qualidade queimado em enormes caldeiras forneciam energia elétrica para o terceiro turno do frigorífico, seus diretores e algumas casas no caminho da fiação de distribuição, pararam repentinamente.
O seleiro João Romani e sua mulher Judita estavam sentados na área da casinha aproveitando a aragem fresca que descia do Irani, ele fumando o último charuto do dia e ela olhando para o Deodoro, esperando que a escola logo expelisse a primeira filha normalista, quando uma bola de fogo precedeu o cessar do barulho das caldeiras e do chiado do vapor atirado aos jorros contra o muro de pedras. O último pedreiro que trabalhava na construção do prédio da Campanha deixava a obra e contou com grande sorte de ter o corpo encoberto pela tampa da caixa de ferramentas no momento em que toda aquela onda de luz e calor se espalhou pelas redondezas.
Naquela hora, Romani ficou para sempre com uma marca do fato incomum: um jato de luz secou seu olho esquerdo. Judita estava de costas e levou um queimão de raspão no ombro, que logo mais, ao deitar, confundiu com as permanentes queimaduras por conta do trabalho na horta sob o sol. Mesmo protegido pela tampa da caixa de ferramentas, o pedreiro Florindo Nunes, que mais tarde viria a construir a concha acústica da Praça, levou tamanho baque e foi arremessado para dentro da poça de mistura de cimento.
Foi também naquele exato momento da explosão que do Rio dos Queimados, entre a bomba d´água, nas imediações da Dom Pedro II, e o marco da cidade, na Rua do Comércio, onde já se projetavam duas ambiciosas construções sobre o leito do rio, os lambaris simplesmente desapareceram. Quem constatou o fato foi o guardador da bomba d'água, o velho Cracker, e um relojoeiro, um Mosele alemão, inventor e curioso sobre todas as coisas, que morava na Deodoro da Fonseca, ao lado da sorveteria do Brezola. Para o primeiro, os lambaris morreram por conta da instalação de um abrigo de leprosos no antigo armazém da cooperativa de agricultores, ao lado da casa do Nono Vieira. Para o cientista, o fato merecia melhor apuração, e ela já estava em contato com outros especialistas, entre eles, um venerável caçador de borboletas, e um certo Olof Lunge, da Ucrânia. A verdade é que os lambaris desapareceram naquele trecho do rio e nunca mais voltaram.
Assim que a cidade soube da explosão, formou-se um aglomerado em frente ao prédio de paredes grossas de tijolos nus da Adolfo Konder. Todos queriam uma explicação do administrador, um ex-gerente da Sociedade Territorial Mosele, Eberle, Ahorns & Cia e representante regional da Brazil Railway Company. Importância e cargos para ditar um fato, ele tinha. Porém quando aqueles cabelos brancos e raros apareceram na porta, os braços caídos e aquela expressão de que não haveria o que fazer dali por diante, houve um desânimo geral em cobrar respostas para a falta de energia elétrica e qualquer palavra sobre o que acontecera no prédio. Aquele homenzarrão tentou erguer os braços, mas não teve forças. As mãos caíram ao lado do corpo e ali ficaram, enquanto a cabeça curvava para a frente e lágrimas molharam seu rosto.
Um burburinho de piedade se soltou. O administrador do gerador de energia deu meia volta e trancou a porta às suas costas. Alguém subiu no telhado do prédio e por uma telha de vidro observou o administrador conversando com as máquinas. Uma caldeira, de enormes proporções, estava arrebentada. No lugar da tampa havia rasgos no metal, que davam a impressão que mãos gigantescas arregaçaram e retorceram aquele grande recipiente de ferro e aço. Dava a impressão de uma boca imensa, mostrando dentes afiados, serrilhados, ameaçadores.
O seleiro João, cuja recordação permanente das ameaças de um certo bandoleiro, fugido da Revolução Farroupilha e que se juntara aos 'pelos duros' do Contestado e que encontrara esconderijo perfeito no interior de Ipumirim, protegido pela mata densa e duas ou três tribos indígenas no caminho de qualquer estranho, tratou a explosão como mais um fato da vida. Se no encontro com aquele coronel tivera a única vaca estripada e as duas moedas para o parto do quinto filho roubadas, e as selas picadas a facão e baioneta, uma explosão que o cegara não haveria de ser pior. Com isso, entendeu que era hora de abandonar a selaria e começou um novo negócio, transportando porcos dos arredores para a estação da Brazil Railway de Marcelino Ramos.
A cidade acostumou-se novamente com a escuridão, e as crianças passaram a temer a chegada da noite. Com ela, vinham as fogueiras nos pátios, e o fogo de vela sempre aceso perto da imagem de algum santo, dentro de casa. Ninguém lhes explicava nada. Mas mesmo as crianças ouviam, noite afora, os cães uivando incessantemente, e os olhares medrosos dos mais velhos. E as garruchas e facões, antes trancados em lugares inalcançáveis, agora rondavam as camas de pais e irmãos em idade de pegar em armas. Por certo, nada haveria de ser combatido. Os fantasmas do Contestado já eram mortos. E o Tigre Velho, bonachão, não representava mais perigo desde o tronco e as correntes.
Apesar do medo da escuridão dos mais velhos, nada de anormal veio com as noites que se seguiram à explosão, a não ser a notícia de que uma certa companhia que explorava a venda de energia elétrica retirada a partir da força da água estava interessada em instalar geradores no Estreito Augusto César, no Rio Uruguai, em Alto Bela Vista. A luz, em breve, seria restabelecida, agora em todas as horas do dia, e muitas  frigidaire embelezariam salas.
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Florindo Nunes se recuperou lentamente da explosão e mesmo sendo um excelente pedreiro, ninguém notara seu sumiço. Com exceção dos lambaris do Queimados, ela havia sido o ser vivo mais próximo da explosão. Quando acordou depois do choque, ouvia uma voz amarga, distante, e palavras irreconhecíveis. Ele meteu-se sob o prédio da Campanha e ali ficou até se convencer que tudo não passara de um sonho ou de uma incrível coincidência. Se tivera alguma preocupação com o que viria pela frente, deixou-a ao contar ao irmão, também pedreiro, o que passara sob o prédio, deitado na lama do Queimados, por um tempo que não conseguia identificar.
Quando as vozes voltavam, ele sabia o remédio: uma talagada de cachaça às 7 horas da manhã. Mas talvez nem mesmo a pinga impedia-lhe de continuar ouvindo aqueles sussurros. Mas ele tinha certeza de que tudo estava ligado com uma certa obra que ainda estava por acontecer na Praça.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Alô

só queria estar com você, falando alguma coisa, falando nada. poderia ser um sozinho em dois. olhando o mar e nada vendo. respirando o ar carregado de sal na borda das pedras. só queria estar com você. vazio e cheio de nada, jogando palavras mudas pra dentro de um pote cheio de caramelos. assim, perdido, entre o real e o imaginário, só queria estar com você. olhando o mundo e vendo apenas a lua, sacudida entre as paredes de concreto, enquanto as pessoas passam com seus cachorrinhos mimados na Hercílio. Outros, sacodem as sacolas nas mãos olhando o relógio no celular. ainda há tempo de chegar no terminal de ônibus do centro, entrar e sentar, e sacudir e dormir até chegar no sofá. receber um cafuné do gato, da mulher, da amante, da amiga que chorou o dia todo uma ausência e quer uma orelha para despejar suas mágoas. eu fotografo a lua entre a Hercílio e o Morro da Cruz pouco antes de uma anormalidade. assim que a imagem foi gravada em meu celular, um risco riscou a lua. de Ingleses para o Pântano do Sul, o risco durou pouco. foi uma criatura que cortou o céu azul e a lua quase completa, nadando no azul do céu, banhada pela alvura da lua. e eu aqui, só querendo falar com você. mas há tantos prédios ao redor que aqui não tem sinal. vou querer continuar falando com você!

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Petit plat carré avec oeuf pour lundi

2 fatias de pão integral
1 pepino orgânico pequeno picado minimamente
2 pontas de de faca de creme de soja
5 rodelas finas de cebola vermelha picada grosseiramente
1 fatia de presunto magro defumado
1 ovo inteiro que seria usado em uma receita para deixar o cabelo brilhoso e sedoso
Duas pontas de faca de creme de queijo magro
Ceboletes
Salsinha
Mostarda preta

Disponha as fatias de pão em prato bem grande. Assim dá a impressão de que tem bastante comida. A foto fica interessante e as pessoas vão querer saber de qual 'chef' da hora você copiou. Nada fale a respeito. Mantenha em segredo suas relações com 'chefs' de cozinha. Continue, besuntando com vigor as fatias de pão, com creme de soja e o creme de queijo magro. Coloque a folha de presunto em uma das fatias. Faça uma rede de rúcula em outra. 
Coloque o ovo em um pratinho quadrado. Fure a gema em várias partes. Leve ao microondas. O tempo necessário para ficar meio mole ou meio duro eu não sei. Sempre faço mais ou menos e dá certo. Enfim, faça como achar melhor. Se não gostar de ovo, vai procurar outra receita porque essa não tem como trocar uma coisa pela outra. Se quiser o ovo bem duro, deixe mais tempo, mas não deixe muito tempo senão o ovo vai explodir dentro do microondas e vai dar uma sujeira daquelas. Por isso eu gosto meio mole, meio duro. Dá mais ou menos 3 vezes 15 segundos. Ou seja, a cada 15 segundos, abra a porta do microondas por alguns instantes. Isso não vai melhorar a performance do ovo. Mas vai tirar aquele bafão de ovo lá de dentro do forninho. Eu faço isso e dá certo. Caso você se irrite ao abrir a porta do forno a cada 15 segundos, acho melhor procurar um médico.
Sobre a rede de rúcula deposite o ovo quadrado. Se você colocou o ovo em um prato muito grande, não vai dar certo. Amanhã, faça o favor e vá na Mil e Um e compre um prato quadrado pequeno. Se quiser fazer o ovo redondo, ovalado, sextavado, enfim, de qualquer outro jeito, procure outra receita. Essa não vai dar certo. Só dá certo com ovo quadrado.
Disponha o pepino picado minimamente sobre um quadrante do presunto. No outro, deixe cair uma lasca de um anel da cebola vermelha. Não tente arrumar geometricamente. Não vai dar certo. Se você tentar deixar melhor do que ficou quando deixou o pepino e a lasca de cebola cair, repense a sua vida. Ou você tem TOC, ou só está fazendo a receita porque alguém viu a foto e disse que deve ser uma delícia. Se for a segunda opção, daqui uns dias vou postar uma receita de macarrão ao alho e óleo. No caso de ser a primeira, não posso fazer nada e é melhor você não comer esse prato.
Pique razoavelmente os anéis de cebola vermelha e deixe cair entre as duas fatias de pão. Jogue umas ceboletes bem picadas e algumas folhas de salsinha rasgadas com as pontas dos dedos em algum lugar do prato, preferencialmente na parte mais distante das fatias. Caso você tenha arrumado as fatias cuidadosamente, desarrume e recomece. Nada pode ser geograficamente arrumado como a gente acha. Veja o caso das ciclovias de Florianópolis. Elas vão de um lugar a lugar nenhum. Esprema o tubo de mostarda preta perto de onde você jogou a salsinha e as ceboletes. Faça uns dois ou três ziguezagues. Não tem nada exato. Só, por favor, acerte dentro do prato.
Coma do jeito que quiser, com as mãos ou com garfo e faca. Como eu detesto lavar roupa toda hora, usei garfo e faca. Depois de comer, deixe passar uns 30min ou 40min. E repita como é bom cebola vermelha ardendo em alguma parte da língua. Faça dois bochechos com um Lambrusco Amabile. Se não tiver, escove bem os dentes e a língua pelo menos duas vezes. Nunca faça nada com números ímpares; um e três, nem pensar!
Caso não tenha gostado do nome que dei para o meu prato, use esse: Pequeno prato com ovo quadrado para a segunda-feira. Quer dizer a mesma coisa.