sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Atrás da porta

Disse o Mar: meu tempo tem muitos silêncios e um grande e permanente ruído; um zumbido. Apito eterno que me faz lembrar e esquecer. É nos silêncios, quando esqueço o som que me acorda, que dedilho as cordas do vento que vem do Pântano, margeando a Ilha, sussurrando para as folhas a maciez da água; a rispidez da pedra; a mão que abana a falta de ar durante a brisa gelada; a ausência. É o vento quem traz notícias, o cheiro, a cor do quase final de tarde que, inusitado, arredio, expõe-se sem nome, sussurrado apenas, mesmo no meio da luz da Primavera. Poderia ser saudade, se algo pudesse descrever o que saudade é na verdade, senão um vazio cheio de nada, ardido, e um prato de onde, pelas bordas, escorre uma ausência que se sente.

Disse a Nuvem: as horas me perdem, perco-as sem ver após as curvas as curvas da Ilha, senão respingos de água depois de amassados contra a praia. Mas ainda há sol além do dia; resta um beijo que nunca será; uma carícia escondida atrás da porta; inúmeros sentimentos sob a cama, acomodados delicadamente junto aos medos.

Olharam-se atordoados. Feitos um do outro, nunca serão o mesmo.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Ventania

do pântano
nervosa e indecisa
entre certa e arrependida
dançou
sem soltar as amarras
e mesmo chamada ao beijo do mar
arremessou grilhão cravado
na hora

Despertou?

Trouxe uma nudez quieta, tostada em gotas:
provocação entre a abertura da janela e a pouca iluminação
entre um beijo, longo, quente, mordido
e a face contraída, exaltada, arremessando-se
para um infinito decimal
Chamada na hora marcada
saltou da porta
nervosa
indecisa
contraída ainda
levada pela ventania de um sul

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Previsão do tempo

A fila dupla de carros e ônibus estacionou a Mauro Ramos a partir das 16 horas de ontem. É um treinamento. Uma preparação para o Verão que se anuncia pela luminosidade, aragem e o olhar aflito da estudante de pernas de fora que atravessou ruas e ainda conseguiu subir no ônibus em frente ao Instituto Estadual de Educação. Sem aquele mal súbito de mobilidade e a partir de agora frequente, estaria em pé na parada esperando o próximo Lagoa. E esperaria demais. Mas mesmo assim se benzeu depois de passar o cartão magnético que abria a catraca e assegurava o passaporte para uma bela paisagem. O agradecimento tem um motivo: não precisaria atravessar a ponte. E muito menos andar na BR-282. E ir a Coqueiros ou ao Estreito, ou Palhoça, São José, Biguaçu ou Paulo Lopes àquelas horas de quase final de dia, e de qualquer dia. Benzeu-se porque seguia para casa e veria no alto do Morro, quando as luzes das estrelas já estivessem sumindo, submetidas às luzes da cidade, todos aqueles turistas rindo, gravando imagens em seus celulares e postando estas imagens nas redes sociais. Eles depois iriam para a Rendeiras e seus carros andando vagarosamente fariam a mobilidade transforma-se em imobilidade da Barra, passando pela Mole, com efeitos até a Joaquina. Ela, com o ônibus andando às sacudidas, esperava descer logo o morro e chegar em casa e tirar os sapatos, e tomar um banho, e comer qualquer coisa, e deitar no sofá e dormir com a televisão ligada. E amanhã de manhã acordar, tomar uma banho, beber um café feito no microondas, calçar os sapatos largados ao lado do sofá e correr até o terminal, e subir num ônibus quase lotado, e subir o morro lentamente de volta ao Centro, benzendo-se para que nenhum carro quebrasse na subida. Lá no alto estariam os mesmos turistas da noite, clicando, clicando, rindo alto e saudando a natureza tão bela. E aquele ônibus passando, vagarosamente passando, carregando semblantes dos trabalhadores de rostos já cansados porque caminharam quadras e mais quadras até o terminal, porque saíram da Costa da Lagoa antes do sol raiar e já sacudiram os estômagos nos barcos; rostos colados nas janelas querendo aquela liberdade, e mães cansadas segurando filhos no colo, e ela reclamando que as janelas não abrem, e que o calor é infernal àquelas horas da manhã. Mas tem sempre um motivo para chamar a bênção. Pelo menos não teria que ir para o Continente naquele dia ou em qualquer outro dia.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Verão

A certeza de que logo corpos de todos os tipos, especialmente aqueles preparados nas academias e já tostados nas câmaras de sol artificial e em jatos alaranjados, ficarão ao alcance dos olhos em Jurerê ou na Felipe Schmidt em brevíssimo tempo está na minha cozinha. O gato saltou de um lado a outro na madrugada. Mas faria isso por qualquer isca. Uma borboleta e ele passaria semanas alisando-a com as patas. Se o cheiro da brisa do Inverno na Hercílio Luz é outro; se o calor do sol na pele já não fica mais na pele, mas se afunda, ardendo; se ao olhar a Mauro Ramos vê-se mais do que o movimento, porque enche-se o pulmão de um ar cozido que se solta do asfalto, e se tudo isso pode também ser indício de um dia que em meio ao Inverno acontece somente para desmoralizá-lo, já não se pode dizer do verdadeiro Verão que se anuncia sobre as pedras do chão da cozinha. Inertes e quase transparentes centenas de asas desprendidas: os vorazes cupins finalmente chegaram. Receberam a o recado da Natureza da de que o frio, mortal, se foi.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O cazumbi da concha acústica

Meu tio Arquimedes Antero Antunes foi pedreiro uma vida. Isso quer dizer toda a vida mesmo. Depois do parto, a mãe morreu. O pai, Arquimedes Antônio Antunes, não teve outro jeito senão levar a criança para onde fosse. E ele não se sentia bem em outro lugar a não ser em uma construção. Podia ser uma taipa na Linha das Palmeiras ou uma mansão na rua dos ricos. A mão na massa, como ele repetia, fazia um homem.
Foi assim que meu tio Arquimedes Antero Antunes aprendeu a viver. Para ele, existiam duas coisas: ou a parede estava alinhada, ou cairia. Não tinha essa de dar um jeitinho enchendo com reboco. Ele não precisava do prumo para saber se algum tijolo ou pedra estavam desalinhados. Bastava uma olhadela. Diferente de outros bons pedreiros, Arquimedes não fechava um olho para fazer essa verificação. Não poderia. Um pedregulho o cegara do olho direito antes de findar os anos de 1970.
Aos 40 anos, Arquimedes Antero Antunes recebeu a incumbência de construir a concha acústica da então Praça da Bandeira. A maravilha fazia parte da modernidade que alcançava o centro da cidade, e que começara com a mudança no traçado do leito do Rio dos Queimados depois das intermináveis queixas recebidas pelo prefeito por conta dos alagamentos. Antes de atender aos eleitores, ele pensou na economia em pontes e pontilhões.
Retificado o rio para que as áreas próximas fossem ocupadas por construções, e instalado o obelisco no final Rua do Comércio, iniciaram as obras na Praça da Bandeira, com a construção da concha acústica e de um incrível chafariz que jorraria águas coloridas e dançantes ao ritmo da música tocada na vitrola do subsolo.
O projeto de Remy Antônio Fávero para a praça foi mais do que atualizar um espaço público: definiu que as pessoas andariam sobre caminhos limpos, de pedra, em lugar de pisarem sobre a grama. Também definiu que era findo o tempo em que as vaquinhas podiam ser levadas para pastar na praça. Para isso, tinha o campo de futebol do Guaycurus. João Romani, meu avô, mestre agricultor, artesão seleiro e exímio condutor a pé de manadas de porcos de Concórdia até o embarque dos animais em Marcelino Ramos nos vagões da ferrovia São Paulo-Rio Grande, guardou uma foto da praça que desaparecia, balançando a cabeça, e mesmo morando a 50 passos da praça, nunca mais pisou nela.
Assim que Arquimedes Antero Antunes entrou no buraco para tirar as medidas e verificar a densidade do solo, sentiu um calafrio e sua visão ficou turva. Distinguiu, em meio ao falatório que ocorria na borda do buraco, entre curiosos, o prefeito e o engenheiro, uma voz rouca que falava em sua direção. Estendeu o braço na direção da voz, como se medisse a distância para tocar em algo ou alguém, e recebeu um puxão que o colocou com o rosto dentro de uma poça de lama. Logo veio um enorme peso nas costas, esmagando-o. Ele, com a boca e narinas entupidas de lama, começou a se debater em busca de ar. Foi o prefeito que desceu pela borda barrenta do buraco para pôr Arquimedes em pé. Ainda afogado, com o rosto rubro e empapado de lama e suor, recebeu do prefeito violentos golpes de mão aberta nas costas, ao ponto de cuspir sangue.
No dia seguinte, o pedreiro chegou cedo ao buraco. Nuvens de chuva escondiam o sol de primavera. Ele desceu pela borda de terra para ver as condições para iniciar a obra. Estava gelado lá embaixo. Aquele ar mais pesado vinha de uma rachadura junto ao fundo, a Oeste, na direção da Escola Deodoro. Arquimedes esticou os braços e andou naquela direção, cego, procurando tocar o ponto de vazamento. Acertou na primeira e mediu a fissura, colocando dois dedos inteiros. A terra mole cedeu e logo os braços estava enterrados até os cotovelos. As pontas dos dedos começavam a amortecer, tamanho era o frio do outro lado. Com um pouco de esforço, a terra caiu, abrindo uma passagem por onde o pedreiro conseguiu enfiar a cabeça e o ombro. Ao longe, viu um ponto de luz. Ele voltou e colocando-se em pé começou a dar ordens aos auxiliares, para que fincassem estacas e baixassem areia, cimento, ferros e pedregulho, além de pás, picaretas e colheres, e começassem a colocar os caixios. Acreditou que a passagem onde estiver nada mais era do que um túnel natural, e a coisa lampejante, um facho de luz de alguma ranhura até a superfície.
O trabalho foi pesado durante todo o dia. Ao anoitecer, os trabalhadores recolheram seus apetrechos e foram para suas casas. Arquimedes estava em pé sobre uma pedra olhando para a obra. Percorreu com os olhos todos os cantos. Fixou os olhos no local em que estivera pela manhã. Deu um suspiro e rumou para uma noite de sono.
Às 6h45min Arquimedes chegou na praça. Uma fila de operários da Sadia voltava para casa, olhando na direção da obra e comentando que em breve todos poderiam levar seus filhos para brincar na roda-gigante que seria instalada no parquinho atrás da concha acústica.
O pedreiro desceu ao fundo do buraco os seus ajudantes começavam a baixar os equipamentos. Ele deu as ordens do dia e antes de subir para comandar as atividades, observou que um de seus auxiliares, e ele já imaginava quem, havia tapado a fissura com uma treliça de ferro. De nada adiantará, pensou com um sorriso irônico, isso tudo ficará atrás de uma grossa parede de pedras.
O tempo bom fez com que a concha estivesse em pé em duas semanas. Mais uma e o cimento estaria pronto para os assentamentos finais, e a obra seria entregue ao prefeito para a festa de inauguração, cujo panfleto convocatório assinalava o Coral Santa Cecília como a principal atração. Arquimedes já decidira que naquele dia de festa estaria na calçada ao lado da igreja, comendo pastel e bebendo uma cerveja no Estrela, quiçá conversaria com o proprietário, pedindo-lhe que contasse mais uma vez a sua luta com a mulher-gorila quando o Circo Americano estacionara na Rua D. Pedro II.
No entardecer do último dia de trabalho na concha acústica, quando todos, exaustos, combinavam se encontrar logo mais para uma memorável bebedeira, Arquimedes permaneceu em um canto daquela construção. Ali em breve seria instalado o banheiro masculino. Ficou ali, apenas observando a porta, a escada do lado de fora, as copas das árvores e no horizonte o sol se pondo vagarosamente atrás das montanhas que circundam Concórdia.
A passarada parou o barulho e Arquimedes se moveu. A escuridão já era completa. Alguma luz tênue e amarela vinha dos postes da rua ao longe. Uma lufada de ar gelado bateu no pedreiro. Arregalou os olhos, imaginando uma inadmissível falha com vazamento na parede diante de seus olhos. Aproximou-se da parede e passou a mão do teto ao chão, nada encontrando. Sentiu alguma coisa, como um comichão, na sola dos pés, vindo do solo, e que ultrapassava a sola grossa das botas de borracha. Ajoelhou-se, tocando com as mãos espalmadas o cimento ainda fresco do reboco. As mãos começaram a formigar ao mesmo tempo em que sensações de calor e frio tomavam-lhe o corpo. Ele começou a suar ao ponto de escorrer água de sua testa. Seus olhos já não tinham mais o que arregalar. Duas mãos magérrimas saíam do chão em direção a Arquimedes, segurando seus pulsos, prendendo-o naquela posição. E em seguida, um corpo volátil, acinzentado e malcheiroso surgiu, balbuciando coisas ininteligíveis. Arquimedes tentou se livrar empurrando-se para cima, para se colocar em pé. Ao erguer a cabeça, viu uma corrente que prendia os tornozelos daquela criatura. 
Dikamba, dikamba... ku jiba foram os sons que Arquimedes, meu tio, mestre pedreiro de mão cheia ouviu antes de perder os sentidos.
Raiava o dia quando o prefeito chegou para averiguar toda a obra. Ouvia-se ao longe suas palmas de satisfação e alegria a cada detalhe explicado pelo engenheiro. Menos quando o prefeito deparou-se com Arquimedes estirado no chão, murmurando alguma coisa sem parar. O engenheiro fez várias vezes um sinal para o prefeito, com o polegar direito empinado em direção à boca. O prefeito passou as mãos nos cabelos e deu as costas ao pedreiro.
Todas as sete noites seguintes, Arquimedes, entrou sorrateiramente no banheiro sob a concha acústica da Praça da Bandeira, carregando sua espátula. Reforçou ferros, camadas de cimento e pedras do chão. Na última noite, ao findar o trabalho, encaminhou-se para o Colégio São José, pulou a cerca e dirigiu-se a uma pequena capela construída pelas irmãs no mesmo local em que bugres e negros foram acorrentados e açoitados quando da colonização. Acendeu muitas velas nesta primeira vez. E assim o fez durante anos, uma vela a cada noite, período em que nenhum cometário se fez a respeito da criatura que mora sob a concha acústica da praça.
Não sei como será daqui para a frente. Meu tio morreu ontem.

(imagem do concórdia-sc.blogspot.com)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Ma De

Aos exatos 31 minutos de meu sono, quando viajava por escuros e sombrios túneis, viscosos aqui e áridos acolá, tocando os pés em um terreno que submetia todo o meu corpo a uma lentidão e letargia que jamais experimentara, acordei.

Se alguém já acordou assim como eu, não sei. É difícil descrever. O meu despertador foi um som sólido. Como se uma lufada de ar, com uma massa em muitas vezes superior ao ar que conhecemos, entrasse por minhas narinas e subisse velozmente até meu cérebro. Foi isso o que me acordou. Um ar com a massa de um corpo. Um som sólido. De imediato, sentei na cama, com as costas eretas, como quando alguém nos puxa pelas duas mãos. Não tenho a lembrança de ter usado qualquer força para sair da posição em que estava enquanto dormia. Até porque, incondicionalmente, durmo de bruços.

Se tivesse credo em outras existências, haveria uma razão clara. Para mim, até agora, ocorreu algo inexplicável.

Assim como meu corpo se moveu para se descolar da cama, em poucos instantes estava colado à mesa no centro de uma sala que, àquela hora, com o vento balançando as cortinas das janelas e a luz do céu desenhando figuras aterrorizantes nas paredes, pareceu-me desconhecida. Mas estavam ali, à minha frente, sobre a mesa, alguns objetos, empilhados cuidadosamente.

Minhas mãos trêmulas tocaram no topo da pilha e logo algumas páginas se moveram ruidosamente. Tratava-se de documentos com sentenças de juízes de um lugar não muito distante. Ao certo, não sei do que se tratava. Minha lembrança guardou apenas as palavras dívidas e arresto. E a mais do que usada expressão de que duas pessoas encontravam-se em lugar incerto e não sabido.

Terminada a leitura com a assinatura do juiz, o leque se desfez, arrumando-se em um canto da mesa. Metade das folhas balançava para fora do tampo de madeira.

Logo a seguir um clarão vindo da janela iluminou um mapa, o próximo elemento da pilha. A princípio pensei tratar-se de um vagalume uma luzinha que parecia esmaecer e retornava com alguma energia amarela em forma de balão. Este sinal estava sobre a Ilha. E quando aproximei a ponta do dedo indicador, como uma seta, revelou-se uma data em janeiro de 2014. E o balão encheu-se de luz. Foi tamanho o brilho que ele se desfez e desapareceu. Retraí minhas mãos para bem junto de meu corpo.

O mapa se moveu, girando sobre a mesa, e durante esse movimento, do papel surgiu a Lagoa e as estradas que a margeiam, e mais adiante, o Campeche.

Fiquei ali, olhando aquele mapa que se transformava, bem diante dos meus olhos, em parte de uma região da Ilha. O ventou acalmou e as cortinas deitaram sobre as janelas. Naquelas sombras, algo se moveu entre a Lagoa e o Campeche, e depois de volta à Lagoa. Minhas pupilas, ainda em choque, saídas da claridade para a escuridão quase total, não descobriram os contornos de tal coisa em movimento.

Pelas crendices que há, poderia ser uma vassoura em voo. Ou um carro preto em movimento. Aquele vai e vem durou instantes, e quando meus olhos acostumaram-se ao escuro, o mapa girou novamente, e a estrada que na realidade há entre o morro da Lagoa e o Rio Tavares havia desaparecido. Nada havia ali, nem casas, nem pessoas, nem asfalto ou calçadas.

Se já estava atordoado com os primeiros elementos da pilha, agora então minha cabeça parecia explodir, na tentativa de encontrar algo real como resposta.

Foi então que a mesa se moveu. Por mais estranho que possa parecer, as sentenças judiciais ficaram no mesmo lugar, ao Norte. Curvei o corpo para olhar o que havia entre a madeira da mesa em movimento e as folhas de papel. Nada. Elas estavam como que coladas, com metade para fora da mesa, mas mesmo assim não se mexiam.

Assim que a mesa parou de se mexer surgiu uma luz no eixo central do móvel. Do teto  começaram a escorrer letras, que mais ou menos do meio daquele tubo iluminado, formavam palavras: outro, pleno, pessoa, desejos, asas, raízes, pedra, e, por fim, vemos as coisas como somos! E logo um turbilhão de um pequeno sinal, sob a forma de um ponteiro, desceu em jorro interminável, brilhando e batendo de encontro às paredes inexistentes, e sobre a mesa, e retornando ao teto, e de novo ao tampo da mesa. Em um piscar de olhos, o tubo de luz e as coisas existentes em seu interior foram se acalmando, e quanto mais devagar giravam e se batiam, aumentava o som de dois distintos murmúrios, um grave e outro agudo.

Tentei sair. Mas algo debaixo da mesa laçou minhas pernas. A corda, fina e dura como o aço, como a corda si de uma guitarra, apertou-me abaixo dos joelhos, esmagando a pele, cortando a carne, serrando ossos e rompendo artérias.

Sobre a mesa, alguns elementos da pilha que eu não havia observado, foram engolidos por uma brisa escura que saía da lâmpada apagada.

Os vidros das janelas começaram a se partir com som dos incessantes murmúrios. Minha mente embaralhou.

Vi o relógio da parede assinalando a madrugada: 1h32min. Tombei. O meu sangue se espalhou no chão e entrou novamente em meu corpo por minhas narinas e boca. E comecei a respirá-lo até sentir que a corda si apertou tanto que separou do meu corpo parte de minhas pernas.

Aos exatos 31 minutos de meu sono, quando viajava por escuros e sombrios túneis, viscosos aqui e áridos acolá, tocando os pés em um terreno que submetia todo o meu corpo a uma lentidão e letargia que jamais experimentara, acordei.

(Ma De, segurado por um fantasma, é uma expressão da cultura vietnamita)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Legato

A cobra envolveu a cabeça de Mainglof com as mandíbulas. Ela rapidamente engoliu ele . Ela lutava com ele escorrendo pelo visco enquanto ele apalpava as raízes das tetas da cobra. Como uma bola de pelo no estômago da cobra, Mainglof vomitou gelo e fumaça. A cobra tentou digerir Mainglof e se retorceu a noite toda entre um pesadelo e outro. Revolveu passados e futuros. Na manhã seguinte, ela botou um ovo apenas. Mainglof nasceu do ovo nu e foi-se para a cidade para contar que era bicho do mato. Mainglof não foi atropelado e morto na primeira esquina. (Leia o primeiro aqui)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Preparatória II

O relógio tocou. 5h30min. Desativei o maldito despertador. Ainda tinha 5 ou 7 minutos. Sempre estava adiantado. Eu. Alguma luz além da janela de vidro aberta e suja, escondida atrás de uma cortina de plástico. Pardais também começavam o dia, mas com um barulhinho ao longe. Eu quieto, tentando uma conexão com hoje e ontem, quando a mulher de cabelos pintados exageradamente caminhava sob um céu nublado com o guarda-chuva aberto, com grandes óculos de sol, que lhe cobriam quase toda a face. Pele branca. No meio do pescoço, quase do tamanho da ponta do meu dedo indicador, um sinal. O que será que ela tinha nos olhos? Olhei na direção dos óculos escuros. Ela não moveu a cabeça, olhando para a mesma direção desde que subira o meio-fio da General Bittencourt. Olhava para o outro lado da avenida Mauro Ramos, a parada de ônibus para a Lagoa da Conceição? Ela passou com o seu guarda-chuva preto e grande sobre a cabeça, segurando-o com as duas mãos, como se prendesse a conta de um rosário. Seus imensos óculos pretos cobrindo quase todo o rosto, a sua pele extremamente branca e a sua pinta escura no pescoço. Deslocou uma leve brisa ao passar. Sem nenhum odor. Talvez usasse um perfume discreto, ou nada. Mas tinha um cheiro adocicado, quase de sangue. A poucos passos, caminhando lentamente, uma mulher com quase trinta anos. Olhos gigantes, azuis. Tristes. Cansados. Àquela hora da tarde, sob o céu cinzento e agoniado entre uma tempestade com raios e trovões e um vento Sul que levasse as nuvens para o mar, qualquer um de olhos claros deveria estar sofrendo. Claridade que fura as nuvens e reflete no asfalto e rebate nas janelas envidraçadas e espelhadas dos prédios do entorno. Cabelos escuros, tingidos desde a raiz, escorridos. Boca fechada. Lábios finos, extremamente apertados, com um leve toque de um batom vermelho já gasto de tanto passar a língua. Sob a camiseta de malha leve e fina, os peitos balançavam suavemente, raspando os bicos contra a trama do tecido. Passos muito curtos, como se fosse um esforço enorme arrancar um pé do chão e colocá-lo adiante do outro. Uma brisa morna e seus cabelos pouco se moveram. Olhou em meus olhos castanho-esverdeados com aqueles enormes olhos azuis e duas pequenas rugas apareceram na pele branca ao lado das sobrancelhas. Suas pernas ganharam agilidade e força. Ela foi em direção ao meio-fio da esquina com a avenida Mauro Ramos. Olhou o movimento dos carros e ônibus, e atravessou entre os canteiros. Sumiu na pequena multidão que se aglomerava sob o teto da parada de ônibus. Nuvens negras se moviam rapidamente no céu, vindas do Cambirela. Sem pressa, quadris largos enfiados em uma calça amarela de academia , cabelos desgrenhados e sujos, olhos pretos, desviando pequenas ranhuras da calçada com seus pés minúsculos, ela apontou o nariz pequeno e passou rapidamente. Olhou para trás, quase parando. Olhou para a minha bunda torcendo mais o pescoço. Assim, pisou em uma lajota quebrada da calçada. Deu passinhos mais curtos, como se mentalmente acertasse um passo, que errou ao ficar desatenta por alguns segundos. Sorri às 5h35min da manhã quando o gato começou a empurrar a porta e eu imaginei que ele viesse ronronar atravessando seus pelos em minhas pernas. Ele queria apenas a janela, de onde concentrava seus olhos nos voos dos pardais. Dava para ver a energia de sua espécie se concentrando em todo o corpo para um bote. Mas ele sabia que se alcançasse a presa, poderia morrer na queda. Eu, não.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Preparatória

apocalipses cerebrais; ondais; ralíssimos perfumes que germinam na garganta para um dia revelar; vem essas dores, membranais, cordais, retocadas em veludosos umbrais, e acode o mundo mundano dos mortais; e vem odor, espremido atrás de portas sepulcrais, e vem visão descomunal, retorcida, embaralhada, atrofiada, hiperespácica - apenas uma onda orbital inframembranal. Vem onda de calor de onde nasce o frio; seres anormais.
apocalipses cerebrais preparam o campo de flores inexistente em memórias escaldadas a lápis no calendário - para que possa não esquecer. luz extinta pelo amanhecer; luz que empalidece com o ardor do dia; e se consome, solitária, esplendorosa, remissiva - ausente em si.
apocalipses cerebrais, até a aurora explodir-se em nuvens de gotículas mortais, e morrer porque se expandir não dá mais. Revolta. Ondas em apocalipses terminais. Inexistências reais.