quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Disseram que vou morrer se ficar sem meus sapatos

Disseram que vou morrer se ficar sem meus sapatos. Estava chovendo e fui até a padaria ver uma torta alemã. Não tinha torta e a padaria estava fechada. Era domingo. E chovia. E na esquina perdi um cadarço dentro de uma boca-de-lobo entupida. Juro que chorei misturando minhas lágrimas aos pingos da chuva e tudo era quase do mesmo tamanho, os pingos daquela maldita chuva de Primavera e minhas lágrimas de dor, e então pensei em você dançando sobre o próprio ventre. E a água escorria do céu vertendo na minha garganta junto com as minhas lágrimas. Perdi somente um cadarço na boca-de-lobo.
Disseram que vou morrer se ficar sem meus sapatos. Era um sol de rachar e saí andando por aí como sempre faço quando me esqueço de mim. Deixei a chave na fechadura. Foi pelo lado de dentro, eu juro. Enfiei um bilhete pelas ranhuras da porta explicando o que deveria fazer quando voltasse. Se voltasse, porque minha ideia foi caminhar em linha reta e enterrar meus sapatos nas dunas e depois no lodo e depois no mar até eu me esquecer para sempre de mim mesmo. Mas era um sol de rachar e minha cabeça ferveu e esvaziou rápido, tão rápido que sequer cheguei na esquina. E foi ali que pisei no outro cadarço e o arranquei do sapato. Foi um gesto tão rápido e com tanta força que minha mão quase descolou do punho, o punho do antebraço, e o meu braço do meu ombro. Juro que foi com essa força. Com tanta força que o cadarço voou para dentro dos muros da igrejinha e meu punho ficou preso no arame farpado sobre o muro. Fiquei ali pendurado. Fiquei ali pendurado. A minha cabeça pegando fogo e meus pés balançando no ar. Quase a mesma sensação de quando te vejo dançando sobre o próprio ventre e as sombras alongadas de teus seios.
Disseram que vou morrer se ficar sem meus sapatos. E nesse dia em que as nuvens se enfiam em nossos umbigos em pingos longos e finos e leves, como a pele que escama depois de horas na areia e nas luas de Naufragados, arranco os sapatos de suas fôrmas e os trituro com os dentes ardendo de pimenta e molhados com sangue dos teus ombros. Ateio fogo ao mundo em volta e espero a sina de que morrerei sem eles. Disseram isso, juro. Que seria uma infindável tristeza e pagamento, imensos e inesgotáveis elos e correntes que se ajustam e desajustam em meus punhos e tornozelos, torneados por torniquetes abrasivos.
Os sapatos se foram calcinados e eu parti com minhas meias furadas sobre as pedras redondas ribeirinhas, chapinhando o dorso da água. Disseram que vou morrer se ficar sem os meus sapatos. De fato, em inesperado dia, minhas ilusões se encontrarão com meus devaneios e dançarei sobre as sombras das paredes, tentando alcançar o teu ventre e os ecos dos teus seios.
Dançarei na chuva e nas areias, e me chamarei de volta para dentro dos meus sapatos. E esperarei a profecia de que sem eles morrerei, e desafiarei novamente, primeiro sonhando em furar as nuvens sem os pés, depois mergulhando com os olhos abertos em uma caixa de areia, e depois de segurar um gato bravio e ouvir o primeiro ranger de dentes, e esfolar o corpo na casca de uma árvore e segurar um rojão que detona minhas sardas, e ver o tempo mudar meus cabelos loiros, e ver meus cabelos nunca se tingirem completamente com a inclemência da idade, e ver-me verme. E depois decidirei o que fazer, se toco fogo em meus sapatos ou mergulho com eles na baía.